Por Victor Bastos da Costa*
No barzinho da esquina, a conta nunca fecha. Não que seja por falta de clientes, muito pelo contrário. Na verdade, toda sexta-feira as mesas se espremem na calçada, esbanja-se o chopp gelado, são ouvidas risadas altas, conversas sobre eleição, futebol e impostos — claro, sempre impostos.
No meio disso, o dono do bar já decorou o roteiro: tem o freguês que pede para “deixar pendurado até segunda”, o outro que parcelou o fiado em três vezes, e aquele que traz o comprovante amassado da transferência feita ontem à noite. Esses o dono conhece pelo nome. Falham, atrasam, pedem desculpa, mas voltam e pagam.
O problema mesmo é o cliente elegante e bem vestido que chegou de terno bem cortado, sentou lá no fundo do bar, pediu a carta de vinhos, puxou o telefone para ficar falando de negócios e, no fim da noite, sumiu num carro de luxo antes de o garçom ter tempo de trazer a maquininha.
Para o dono do bar só sobraram a louça suja, a conta em aberto e um nó na garganta de ter sido passado para trás por alguém que, tudo indica, decidiu viver às custas dos outros.
Troque o bar por “Brasil”, o terno por “CNPJ” e a conta por “tributos”. Feito isso, vai encontrar o personagem que o Projeto de Lei Complementar 125/2022 batizou, com toda elegância jurídica possível, de devedor contumaz.
Nesse Bar Brasil, foi através do PLP 125/22 – há pouco aprovado pelo Legislativo e enviado para a sanção pelo Executivo federal, que se decidiu mudar um pouco as regras do jogo. Depois de anos anotando fiado em guardanapo, o dono do Bar Brasil percebeu que tinha um cliente diferente: não era o atrasado eventual, mas sim o profissional do calote, aquele que devia tanto que já dava para abrir uma filial só com o valor pendurado.
É isso que o PLP 125/22 tenta fazer: olhar para a mesa do fundo e dizer, com uma mistura de delicadeza e cansaço na voz: “A partir de quinze milhões na comanda isso aqui não é mais descuido. É modelo de negócio.”
O legislador, mesmo com o gosto azedo de ter que lidar com esse perfil de devedor, ainda dá resquícios de elegância. Não basta dever muito, tem que dever muito e há muito tempo e sem explicação que se sustente.
Quatro períodos seguidos de atraso ou seis alternados em um ano, para a lei, não é tropeço, mas sim coreografia. E mais: se o sujeito nem patrimônio conhecido tem para cobrir o rombo, ou se não se dignou a parcelar, garantir, discutir seriamente a dívida, o retrato fica bem nítido.
No Bar Brasil, é o freguês que jura que “vai acertar tudo depois”, mas estaciona na porta com seu carro de luxo e diz distribuir as bebidas na mesa de amigos.
Falta de aviso também não será. Pelo que diz o projeto de lei, antes de gravar o nome “DEVEDOR CONTUMAZ”, a casa ainda avisa: notifica, indica os débitos, dá 30 dias para regularizar a conta ou, pelo menos, se explicar.
No Direito, chamamos de contraditório e ampla defesa. No coloquial, é o dono do bar avisando: “Meu caro, ou você paga, mostra que tem como pagar, ou conta uma história muito boa. Mas boa de verdade, não viagem”.
E tem, é claro, aquele com quem não se dá mais para ter dúvidas do que é. O PLP 125/22 lista aqueles para quem o benefício da dúvida não existe: empresas de fachada, firmas montadas para emissão de notas frias, organizações criadas para não recolher tributo nem por acidente, comerciantes de mercadorias roubadas, contrabandeadas ou adulteradas.
No bar, são os mesmos que entram com produto de origem duvidosa, vendem aos outros clientes e ainda querem que o dono finja que não viu.
Seu dinheiro pode render mais! Receba um plano de investimentos gratuito, criado sob medida para você. [Acesse agora!]Vem então a parte que tenta fazer doer o bolso do devedor contumaz: as penalidades. Pelo PLP, devedor contumaz não entra em licitação, não assina contrato novo com poder público, não pega concessão, não desfruta da vitrine estatal enquanto esconde tributo debaixo do tapete, não acessa benefícios fiscais, etc.
A lógica é simples: se você vive de não pagar a conta, não vai ser convidado para cuidar do caixa da festa. Em paralelo, também tenta atacar pelo lado da inaptidão cadastral do CNPJ da empresa devedora — um movimento que não necessariamente mata uma empresa, mas torna dificílima sua vida. É aqui que o dono do Bar Brasil coloca uma foto do caloteiro perto do caixa e anota: “Não vender fiado a esse cidadão”.
É irônico que o Brasil tenha chegado a esse ponto tentando, a trancos e barrancos, construir um sistema caótico e sufocante justamente numa tentativa de evitar esses recorrentes calotes fiscais. Em vez de um sistema simples, transparente e previsível, inundamos o País com normas, regimes especiais e exceções, sempre tentando antever o próximo truque dos praticantes de calotes sistêmicos.
O resultado é um labirinto: o contribuinte sério se perde tentando cumprir tudo, enquanto o devedor contumaz parece navegar com mapa na mão tendo ajudado a desenhar os buracos por onde pretende escapar. Contribuintes sérios grandes e pequenos não raramente quebram tentando pagar e cumprir suas obrigações ao passo em que até precisam concorrer com aqueles que transformaram a inadimplência em modelo de negócio.
Em meio a tudo isso, não parece ser uma lei que se vende como uma cruzada absoluta contra os devedores reiterados. O regulamento do Bar Brasil oferece, a quem queira, uma saída honrosa: o freguês paga a conta integralmente e o procedimento se encerra; caso queira negociar tudo e cumprir as parcelas, penalidades entram em modo de espera.
A lei não exige perfeição, apenas abre caminho para quem se dispõe a “mudar de vida”. Além disso, admite-se certos nuances. Se o histórico mostrar que a companhia realmente vem honrando a maior parte dos parcelamentos (mais de 75% do que prometeu pagar) ela não será automaticamente arrastada de volta ao rol dos contumazes por qualquer escorregão.
Quem atua com tributos precisa tomar as rédeas e admitir que o Estado exagera, autua errado, sanciona com peso em demasio e que justifica a existência de um verdadeiro Código de Defesa do Contribuinte — justamente a ideia geral do PLP 125/22.
Mas a regra do jogo não pode ser omissiva e, às custas dos contribuintes éticos, dar licença para quem continua repassando a própria conta para o resto da sociedade. Esse não é “contribuinte”, é beneficiário de um subsídio informal pago por todos os que não são cínicos para agir com a mesma malícia.
A informação que os grandes investidores usam – no seu WhatsApp! Entre agora e receba análises, notícias e recomendações.Se o PLP 125/22 não é a solução perfeita, não resolve a complexidade do manicômio fiscal, não cura a regressividade e nem humaniza a relação entre fisco e contribuinte, ao menos tenta separar os que atuam corretamente dos que construíram negócios às custas dos demais. Um passo importantíssimo, decerto, mas que não pode ser dado sozinho.
*Victor Bastos da Costa, é sócio da área tributária da Andrade GC Advogados, especialista em Direito Tributário pelo IBET, e professor seminarista no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários
O post OPINIÃO: Sabedoria do dono de bar – o que fazer com o cliente caloteiro? apareceu primeiro em Monitor do Mercado.

